A escola municipal Irineu Marinho investe na música para incluir alunos com deficiência
São 7h quando toca o alarme de início das aulas, e a diretora Lisandra Pingo se apressa em explicar: “Deu problema ontem com a música, já chamamos alguém para arrumar”.
Música? Sim, já há algum tempo a escola municipal Irineu Marinho, na região do Ipiranga (zona sul de São Paulo), trocou o incômodo sinal sonoro por uma canção para demarcar o tempo sem incomodar alunos com autismo que, muitas vezes, têm hipersensibilidade auditiva.
Do alarme ao banheiro, do material aos livros, tudo ali foi pensado para possibilitar que alunos com qualquer deficiência aprendam junto com alunos sem nenhuma deficiência.
A experiência da escola mostra que a inclusão é possível em uma unidade comum da rede municipal desde que haja estrutura e profissionais capacitados. Mesmo que algo não funcione, como o alarme naquela manhã, a ideia é que todos estejam juntos, mesmo que seja necessária uma adaptação, e não juntos só depois que tudo estiver funcionando perfeitamente.
O debate sobre a inclusão de alunos com deficiência em classes regulares ganhou força após a declaração do ministro da Educação, Milton Ribeiro, de que algumas crianças com deficiência “atrapalhavam entre aspas” o aprendizado de outros alunos na mesma sala de aula. Defensor de classes especiais para crianças com deficiência mais grave, ele afirmou que elas não aprendem nas salas comuns.
“Esses 12% [de alunos], elas são, realmente, elas se atrapalham mutuamente. Nem uma ouve, nem o outro entende. Porque uma criança, por exemplo, com um grau muito elevado de um tipo de problema, essa criança não consegue aprender”, declarou.
Na Emef Irineu Marinho, as declarações causaram indignação.
“Ao pensar na criança com deficiência, o problema é pensar que existe um problema, porque não existe problema nenhum”, diz a diretora. “A limitação, se existe, está fora da criança, de não oferecer o que ela está necessitando. Porque todos nós temos limitações.”
Desde meados dos anos 2000, a política nacional para a educação especial prevê que alunos com deficiência estudem preferencialmente em classes regulares, se necessário com atendimento especializado no contraturno.
Antes, a maioria deles ou estudava em instituições e turmas separadas ou mesmo estava fora da escola.
De 2010 a 2020, as matrículas de educação especial quase dobraram, chegando a 1,3 milhão. Quase 90% desses alunos estudam em salas regulares.
Pesquisas mostram que a integração é vantajosa para os dois grupos. Alunos sem deficiência desenvolvem maior respeito e abertura ao novo. Alunos com deficiência têm acesso a um repertório maior do que teriam em uma instituição especializada e, integrados, têm até mais chance de acesso ao ensino superior.
Para que isso funcione, não basta boa vontade, é preciso recurso. Mas não é necessário ser uma escola especializada.
Dos 430 estudantes da Irineu, 25 têm deficiência.
A escola virou na região uma referência no tema porque é equipada com duas salas de recursos multifuncionais.
Os espaços, como diz o nome, têm uma série de recursos para ajudar parte dos alunos com deficiência a desenvolver habilidades que não serão trabalhadas na sala de aula comum, com todos os alunos.
Um dos objetos ali, por exemplo, é um espelho, com o qual se trabalha a noção de corporalidade. O aluno que consegue desenhar os elementos do corpo demonstra sinais de prontidão para a alfabetização, diz a professora Elizandra Zerbinatti.
8h, aula de inglês. Matheus, 13, desenha um leão. Enquanto a professora da turma anota na lousa o tema da discussão do dia, Elizandra está ao seu lado mostrando os animais: “Lion”, ela diz, e o aluno aponta a figura.
No momento em que o resto da classe anota um exercício na lousa, ela chama a professora: “mostra a pronúncia para ele”. “Lai-on”, ela soletra.
Com deficiência intelectual, Matheus tem dificuldade em realizar atividades escritas, mas consegue associar informações aos recursos visuais. Suas características estão anotadas em uma pasta a que todos os professores têm acesso. A ficha, feita em diálogo com a família, tem itens como “como eu me comunico”, “coisas que eu gosto”, “coisas que me irritam” e “coisas que eu posso fazer”.
Para se comunicar com a professora, uma placa fica ao lado de Matheus. Tem as ilustrações de água, comida, banheiro, sim e não. Pedro, 14, também usa uma enquanto não é configurado o tablet que lhe permite se comunicar usando o globo ocular.
São 8h45, e sua turma está na aula de ciências. Ele se mostra interessado no tema da alimentação saudável.
A mãe dele é chef, diz a professora Vanessa Harumi Albano. O contato da escola com as famílias é constante.
Enquanto a turma conta como a alimentação mudou –para pior, no caso– na pandemia do coronavírus, Vanessa anota em letra ampliada a data, a matéria e o tema da aula no caderno de Pedro. O objetivo é a família ver o que foi tratado e ajudar a desenvolver o assunto em casa.
Com a ajuda dos pais, ele fará o mesmo dever dos demais: anotar a alimentação para se aprofundar em temas como valor nutricional e outros.
A ideia é que as atividades sejam as mesmas ou parecidas, mas a avaliação pode ser adaptada, explica Vanessa.
Por exemplo, no tema alimentação saudável, o objetivo pode ser desenvolver a questão da escolha, do que é bom, e outras habilidades. Se não souber ler a palavra maçã, reconhecer uma maçã.
O trabalho de Vanessa e Elizandra ao lado de Pedro e Matheus na sala de aula não deveria estar sendo feito por elas, mas por estagiários estudantes de pedagogia que cumprem esse tipo de função na escola.
Em tempos normais, elas estariam na sala de recursos no atendimento especializado. Mas, neste ano, a contratação dos estagiários atrasou com a pandemia, e a previsão é que só cheguem em 45 dias.
Esse não é o único obstáculo que a pandemia trouxe para a política de inclusão. Na escola, parte dos alunos com deficiência continua sem a frequência presencial, entre outros motivos, porque as mães avaliam que eles não têm autonomia o suficiente para garantir o cumprimento de protocolos como o uso de máscaras.
No corredor, a reportagem encontra Renata Guerra, professora da sala de leitura. Ela separou livros de um programa para alunos começarem a montar um acervo. Com baixa visão, Stéfany, do sexto ano, vai ganhar uma sacola de obras com letras maiores.
Renata conta que aprendeu com Elizandra e Vanessa sobre algo chamado desenho universal de aprendizagem.
“As aulas na sala de leitura são pensadas, em primeiro lugar, para a criança com deficiência. Se é bom para ela, acaba sendo bom para todo mundo. Então, por exemplo, se a criança não consegue ler sozinha, eu vou trabalhar oralmente”, exemplifica. E a atividade desenvolvida a partir disso pode ser escrita, desenho, massinha.
E quando o aluno realmente não consegue ou não quer fazer a atividade? Nicolly dos Santos Dias, 14, não quis fazer a aula de tênis aquele dia, porque o movimento com a raquete não é confortável na cadeira de rodas que ela usa para se locomover.
Enquanto a turma pratica o esporte, uma colega se propôs a fazer outro exercício com ela ao lado da quadra. Para chegar até ali, ela teve que descer a escada carregada por professores, porque o elevador não funcionou. Foi a segunda vez só naquela semana.
“Não deveria acontecer, mas acontece. E não serão só os alunos com deficiência que precisarão de adaptações”, diz a diretora, com a perna quebrada após um acidente.
“Peguemos o exemplo da matemática. Tem um número considerável de crianças com dificuldade, outras têm uma super facilidade. O professor, na sala, vai ter que fazer esse atendimento de acordo com a necessidade, a dificuldade e o ritmo de cada uma”, diz.
Matemática não é a matéria preferida de Nicolly. Ela lidera um clube ligado às letras. Fala com entusiasmo da atividade, mas cita as declarações do ministro Milton Ribeiro.
“A gente fica pensando o que se passa na cabeça dessa pessoa? Por que ele está nesse cargo?”
11h. Toca o alarme do fim do turno da manhã. Agora sim deu certo. São as palmas da música do Queen. We Will Rock You.
Fonte: FOLHA
Publicado por Abime