Na Serra Gaúcha, Cidade Escola Ayni aplica pedagogia livre de modelos para criar uma nova forma de viver conectada com a terra e com os ciclos da natureza
via Por Vir
Localizada em um bosque na cidade de Guaporé, a 192 quilômetros de Porto Alegre, a Cidade Escola Ayni tem um lema: “Deixem as crianças em paz. Quem precisa de escola são os adultos”. Criada em outubro de 2015, a Ayni amplia o conceito de educação integral e propõe tirar os seres humanos da “normose’, ou seja, da matrix de uma sociedade inserida na competitividade, comparação, ilusão e ansiedade.
A palavra “Ayni” é de origem inca e quer dizer cooperação, solidariedade e reciprocidade. A escola é um convite ao ser humano para praticar uma forma diferente de se relacionar consigo mesmo, com a terra e com os ciclos da vida. Idealizada por Thiago Berto, um jovem empresário bem-sucedido da área de tecnologia, que decidiu largar tudo para viajar o mundo e conhecer diversos projetos pedagógicos em países tão diferentes quanto Estados Unidos, Espanha, Peru e Butão.
Quando voltou, Thiago foi para sua cidade natal, na Serra Gaúcha, e conseguiu com o prefeito de Guaporé a concessão por 20 anos de um parque ecológico de 45 mil metros quadrados lançando a semente do que seria a Cidade Escola Ayni.
Apesar de não se prender a nenhuma teoria ou prática pedagógica, a escola se estrutura em quatro eixos principais, que são:
1) Educação Viva: consciente e com olhar individual para o ser humanos;
2) Economia Circular: consumir menos e viver em abundância com o suficiente;
3) Agroecologia: respeito pelos ciclos da natureza;
4) Sagrado: saber lidar com a ancestralidade, o feminino e o masculino.
“A intenção é desenvolver um ser humano integral, conectado com a natureza e com ele mesmo”, explica a pedagoga Ana Paula Zatta, que é uma das guardiãs da Ayni, como se autodenomina a equipe que trabalha na gestão.Aqui nós matriculamos os pais e os filhos ganham uma vaga
A escola abriu sua primeira turma de crianças em março de 2018, atendendo de 3 a 7 anos. O objetivo era trazer não apenas a criança, mas toda a família para o centro do projeto. “Aqui nós matriculamos os pais e os filhos ganham uma vaga”, brinca Thiago. Para serem aceitos na escola, as famílias passam por um processo de triagem com vivências coletivas e conversas individuais sobre os filhos e a dinâmica familiar.
A Ayni funciona no contraturno, portanto as crianças não deixem a escola formal. Outra exigência é que, apesar de gratuita, os pais precisam se dedicar ao menos uma hora por semana nas atividades da escola, seja trabalhando na horta, nas atividades de infraestrutura e bioconstrução. Além disso eles precisam participar de cursos de (des)formação, como são chamadas as vivências na Ayni.
Aliás, os cursos são o carro-chefe da escola e atendem não apenas as famílias matriculadas, como gente de todo o Brasil que vêm conhecer o projeto in loco. Em três anos de existência, os cursos já receberam mais de 1.800 pessoas. Outros 7 mil participantes passaram por dinâmicas ou palestras ministradas por Thiago Berto em dezenas de cidades do país.
Foi o caso de Luciana e o Diogo Lobo, pais de Beatriz e João Pedro, de 7 e 5 anos, que conheceram o projeto Ayni em um congresso sobre felicidade, e saíram de Recife para um retiro de uma semana em Guaporé. “Íamos para Portugal, mas optamos por priorizar uma viagem em família com enfoque no autoconhecimento”, conta Luciana. Para ela, o período de imersão na pedagogia Ayni foi enriquecedor. “Somos pequenos demais diante da imensidão do universo mas trazemos a essência do divino. As crianças estão mais conectadas com essa essência e por isso devem ser deixadas livres com autonomia responsável”, explica Luciana, que diz que um dos principais aprendizados do retiro foi cultivar o estado de atenção e presença que conectou toda a família.
Seja nos retiros, dinâmicas ou vivências para adultos, crianças e jovens, as experiências com a pedagogia Ayni são bastante inspiradoras para todos que participam. Os temas vão do resgate da criança interior à cura e espiritualidade, entremeado de danças circulares e partilhas entre as pessoas. “A força do grupo nos faz sentir mais fortes e protegidos para mostrarmos nossas vulnerabilidades, sabendo que seremos aceitos”, afirma Diogo Lobo.
Embora difícil de explicar em palavras, a pedagogia Ayni é transformadora para todos que já participaram e conquistou simpatizantes e apoiadores de todo o país como o empresário Marcos Bordin que se mudou com a família para Guaporé para auxiliar no desenvolvimento e consolidação do projeto. Para ele, vivenciar as experiências da Ayni é como sentir o perfume de uma rosa. “Não dá para descrever, só experimentando para saber”, afirma.
Ambiente livre
Desde sua criação, a Ayni vem sendo desenvolvida por meio da Permacultura, um conceito de cultura permanente que se baseia na observação dos ecossistemas naturais e propõe viver de maneira mais sustentável.
A bioconstrução é uma dessas vertentes. As casinhas da cidade escola onde funcionam os ateliês, as salas e espaços de aprendizagem são feitas com hiperadobe, uma técnica que usa areia e terra criando barro que são colocadas em sacos vazados e alinhados em paredes circulares. As bioconstruções redondas com janelas enfeitadas de garrafas vidros em formatos de bichos tem aberturas que deixam entrar a luz do sol e não precisam de iluminação artificial, se harmonizando com a natureza e criando um ambiente lúdico para as crianças.
No ateliê das crianças, adornado com móveis de madeiras em formato de folhas, borboletas e flores, as crianças ficam completamente livres para fazer o que quiserem. Nada é direcionado. Cada criança tem o seu tempo e escolhe suas próprias atividades. Nem para comer tem horário regrado. Cada uma se alimenta a hora que sentir fome.
“Nós tiramos o controle e colocamos a confiança no lugar”, explica Ivana Jauregui, uma uruguaia que viveu 14 anos em Piracanga, no sul da Bahia, onde ajudou a fundar a escola Inkiri, e se mudou há um ano para Guaporé para trabalhar no projeto Ayni. Trouxe consigo o conceito da pedagogia viva e consciente, um movimento que trabalha a autonomia do ser humano integral, conectado com a sua essência.
Ivana conta que as crianças chegam à escola e não sabem como agir porque já foram condicionadas a obedecer. “Uma vez um menino de 5 anos parou na minha frente e disse: estou com fome. Ele esperava que eu desse comida pra ele e orientasse todo o processo. E eu simplesmente respondi: E o que vc vai fazer? No início, ele ficou paralisado, mas depois foi e pegou uma maçã por sua própria conta e me pediu para descascar. Aí eu fui e fiz o que ele pediu, mas o protagonismo foi todo dele. Ele estava com fome, pensou o que fazer e resolveu seu problema.”
Ivana é uma das ativistas da aprendizagem viva e faz parte de uma rede de escolas por todo o mundo que propõe esse novo modo de encarar a educação. Para ela, o papel das guardiãs na Ayni é cuidar da harmonia do ambiente para que os “pequenos mestres” possam exercitar sua curiosidade e plenitude. “A gente não precisa ensinar nada. Basta estar atento, sem pré-julgamento, e contemplar as descobertas que eles fazem”
As crianças só precisam pedir autorização para irem ao bosque por causa da segurança. Mesmo assim, as atividades são livres e vivenciadas de acordo com o interesse dos pequenos. No parquinho, os brinquedos de madeira não tem as estruturas convencionais e o dia a dia acontece de forma mais natural e orgânica possível, sem programação prévia. “Todo momento aqui é sagrado e olhamos cada criança como única”, completa Ivana.
Diferente das escolas tradicionais, não separação por idade, nem qualificação. Os resultados são avaliados a partir das descobertas individuais e o empoderamento da criança. Para isso, é preciso conhecer de perto e criar vínculos com as famílias que recebem visitas mensais e participam ativamente do processo de aprendizagem. “Somos parceiros nessa jornada”, afirma Ana Paula Zatta que faz o acompanhamento com cada família.Ela tem liberdade para exercitar sua curiosidade e gasta a maior parte do tempo dedicada aos desenhos e aos trabalhos artísticos
Carolina Fonseca é uma das mães que fazem parte dessa comunidade. Nascida em Caxias do sul, ela morou 15 anos na Suíça e se mudou com marido e a filha Lara para Guaporé em 2018. A menina de 5 anos demorou a se adaptar à região, por conta da língua, da alimentação e da interação com outras crianças. Ela está matriculada na educação infantil de uma escola tradicional na cidade e passa as tardes na Ayni. Em um ano, a mãe já percebeu a abertura da filha às novas experiências. “Ela tem liberdade para exercitar sua curiosidade e gasta a maior parte do tempo dedicada aos desenhos e aos trabalhos artísticos. Em suas palavras de criança, Lara diz que na Ayni pode ser ela mesma, não precisa seguir as regras que não entende”, conta Carolina.
Em 2019, a Ayni passará a atender também alunos de 8 a 14 anos sem salas de aula ou divisão de turmas. Além dos ambientes já existentes, eles terão a sua disposição um laboratório maker com telescópio, impressora 3D e artefatos de robótica e física para práticas de aprendizagem livre.
Agroecologia e voluntariado
Outro pilar forte da escola é a Agroecologia, inspirada na sabedoria e ciclos da natureza. Nos canteiros criados no bosque da Ayni se trabalha com a produção de mudas com semente crioulas – que não foram modificadas geneticamente – para plantar abóbora, batata doce, alface, rúcula, brócolis e tomate. Segundo Érica Canton, a guardiã dessa área, o brasileiro consome em média 8 litros de veneno por ano, o que é extremamente nocivo para o ser humano.
Para cultivar a vida de uma maneira mais sustentável, a Ayni usa matéria orgânica para adubar a terra de duas formas. Primeiro, com a poda das árvores e da adubação verde, que é o sistema integrado com as plantas, e a partir dos canteiros de compostagem onde se aproveita todo lixo orgânico gerado. Os banheiros secos também viram matéria orgânica. “Aqui na Ayni tudo é reaproveitado com o objetivo de fechar o ciclo da natureza”, explica Érica.
Os visitantes da escola são convidados a trocar sementes crioulas e aprendem na prática sobre o plantio e o cuidado da terra, podendo saborear o que é colhido. Um dos papéis mais importantes nesse sistema é desempenhado pelos voluntários, que permanecem de 15 dias a 1 mês e podem participar de todos os processos de cultivo da agrofloresta.
Em três anos, já passaram pela Ayni mais de 400 voluntários de vários países, inclusive da China. Diferente dos retiros e dos cursos, os voluntários se hospedam em uma casa que fica dentro do bosque e podem vivenciar de perto todas as áreas trabalhadas na Ayni: da educação viva ao cultivo da agrofloresta, passando pela bioconstrução e vivências do sagrado feminino e masculino.
Diego Rosa, 31 anos, e Ana Júlia Valentine, 19, de Santa Catarina, são dois voluntários que passaram pela pedagogia Ayni e deixaram nas paredes da casa do bosque seus aprendizados. “A experiência é única. Aprendemos aqui a essência do ser individual e coletivo”, afirma Diego.
É essa energia da colaboração, do afeto, da empatia e da vida em comunidade que a Ayni quer espalhar para outros lugares fora da Cidade Escola. A ideia é que o projeto termine quando acabar o período de concessão pública, em 2035. “Queremos devolver o bosque para a cidade com todas a melhorias feitas dentro dele”, imagina Thiago. “Não queremos criar uma bolha, mas sim inspirar e encorajar as pessoas a criar outras formas de viver”.
* O programa Janelas de Inovação (Futura/Fundação Telefônica) também apresentou a escola
Fonte: Por Vir – Inovações em Educação | http://porvir.org/
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