Vindos de esferas oficiais, os vigorosos ataques àquele considerado nosso maior educador encontram uma resistência ainda mais determinada
via Revista Educação
O educador, pedagogo e filósofo Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997) – ou apenas Paulo Freire para o Brasil e o mundo – é o nome de escola pública mais popular do país, à frente de outros brasileiros ilustres como Monteiro Lobato, Vinícius de Moraes, Ayrton Senna e Tancredo Neves. É o brasileiro mais homenageado da história no ambiente acadêmico, com pelo menos 35 títulos de doutor honoris causa de universidades de todos os cantos do mundo, sem contar os concedidos pelas brasileiras.
Seu livro mais conhecido, Pedagogia do oprimido, com fundamentos do que passou a ser conhecido como Pedagogia Crítica, está entre os mais traduzidos e vendidos no exterior da história editorial do Brasil. Em abril de 2012, foi declarado Patrono da Educação Brasileira na lei nº 12.612. Apesar de toda essa consagração, Freire passou a ser condenado e rejeitado pela maioria suprema das autoridades políticas e educacionais do novo governo, a começar pelo presidente Jair Bolsonaro. No embalo da campanha presidencial, tomou força por aqui, sobretudo entre os defensores do projeto Escola Sem Partido, os que o consideram um “doutrinador” com “ideias ultrapassadas”.
Em artigo publicado no site do Instituto Liberal, Jefferson Viana, um dos fundadores do movimento Universidade Livre e integrante do Partido Social Cristão (PSC), qualifica sua obra de “assassinato do conhecimento”. Nas manifestações do Escola Sem Partido, é comum encontrar faixas com a frase “Chega de doutrinação marxista: basta de Paulo Freire”. Mas, afinal, o pernambucano era mesmo um doutrinador com ideias hoje perdidas no tempo? O que está desatualizado e o que ainda é útil em seu pensamento?
Luiz Roberto Alves, professor livre-docente aposentado da Escola de Comunicações e Artes da USP, educador há 50 anos e integrante do Conselho Nacional de Educação (CNE) até 2016, discorda frontalmente das críticas. “O problema central entre Paulo Freire e o Brasil é que a obra freiriana avançou muito e o país, ao contrário, retroagiu. E quanto maior é o atraso, menor é a aceitação”, define. “Com honrosas exceções na academia, na arte e nos movimentos sociais brasileiros, o que se vê é que, enquanto o ponto central da reflexão de Freire é a educação como ação cultural para a liberdade e autonomia das pessoas, na prática o ensino em nosso país organiza matrizes sobre o que e quando ensinar. Os aprendizes nada ensinam com sua cultura, curiosidade e perguntas. A cultura educacional, para Freire, se realiza por atos de comunhão interpessoal: o outro e a outra são indispensáveis para que eu me reconheça e compartilhe, visando o crescimento cognitivo e emocional de educadores e alunos. Quem só ensina – ou imagina fazê-lo – não comunga nem amplia horizontes culturais. Em Freire, não há educação ou ensino sem desafios e confrontos, indispensáveis para a afirmação do saber curioso, animado, questionador, realizador de escolhas e voltado para a autonomia.”
Alves é duro ao rechaçar o que acredita ser as motivações das correntes críticas para rejeitar os conceitos do educador. “O que aconteceu na história das relações entre Freire e o Brasil é que ele, no seu aprendizado, nas comunhões e na vivência pelo mundo, avançou reflexões que não puderam esperar o país dirigido por grupelhos de interesses, dilapidado em suas raízes culturais populares e enredado por cipoais de corrupção. Dentro dele, criança, adolescente e jovem encontram mais o desamparo que a comunhão, mais as lições que os projetos, mais as ‘balas perdidas’ que os direitos de se afirmar como sujeito, cidadão e cidadã.”
E continua no contra-ataque: “Paulo Freire é o educador da sociedade liberada, aberta e determinada. Por isso, deu muitos passos adiante do Brasil que fica a girar entre preservar recursos ou meter os tratores na floresta, a se orientar por movimentos de bolsas de valores, a discutir sexo e gênero como se fossem tabus e totens, para citar quase nada dos nossos duvidosos, envelhecidos e falsos dilemas. Se o Brasil quiser vivenciar o novo em educação e cultura, que corra atrás do seu brilhante e rigoroso educador e que comece por lê-lo, o que pouquíssimas pessoas fizeram, até mesmo para criticá-lo de forma inteligente”, prega.
O guru e o mestre
A maior parte dos integrantes da corrente de pensamento contrária a Paulo Freire tem como guru intelectual Olavo de Carvalho. Admirado por Bolsonaro, Carvalho teve influência decisiva na escolha de pelo menos dois ministros do atual governo: o da Educação, o colombiano de nascimento Ricardo Vélez Rodríguez, e o das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Fica fácil compreender a admiração dos críticos ao ler um trecho de um dos textos de Carvalho sobre o educador e filósofo pernambucano. “Vocês conhecem alguém que tenha sido alfabetizado pelo método Paulo Freire? Alguma dessas raras criaturas, se é que existem, chegou a demonstrar competência em qualquer área de atividade técnica, científica, artística ou humanística?”, questiona. “Nem precisam responder. Todo mundo já sabe que, pelo critério de ‘pelos frutos os conhecereis’, o célebre Paulo Freire é um ilustre desconhecido. As técnicas que ele inventou foram aplicadas no Brasil, no Chile, na Guiné-Bissau, em Porto Rico e outros lugares. Não produziram nenhuma redução das taxas de analfabetismo em parte alguma. Produziram, no entanto, um florescimento espetacular de louvores em todos os partidos e movimentos comunistas do mundo. O homem foi celebrado como gênio, santo e profeta. Isso foi no começo. A passagem das décadas trouxe, a despeito de todos os amortecedores publicitários, corporativos e partidários, o choque de realidade”, acrescenta.
O pedagogo e professor Paulo Roberto Padilha, mestre e doutor em Educação pela USP, é diretor pedagógico do Instituto Paulo Freire. Foi professor da rede estadual de ensino de São Paulo, escolas privadas e universidades nas duas últimas décadas. Na sua avaliação, posições duras contra Freire, como as assumidas por Carvalho, são fruto do medo despertado pelas ideias do educador em um “setor considerável da elite brasileira” que pretende ser ou se sente dona de parte do poder. “Esse grupo é claramente dividido em duas partes. A primeira é composta por uma elite intelectual bem formada, completamente favorável à mercantilização do ensino no país, para se aproveitar desse cenário. E a segunda, pelo eixo representante do conservadorismo político nos planos político e empresarial que, com as forças recuperadas, deseja reimplantar a educação mecanizada, destilada, impedindo o jovem de entender seu ambiente, questioná-lo e de evoluir e influenciar como cidadão”, acusa.
Padilha considera o Escola Sem Partido um “projeto midiático de escandalização da educação e da cultura no país, baseado numa avalanche de fake news”, com o objetivo de convencer a maioria da população de que o caminho deve ser o defendido por essas duas alas. “O que eu acho graça é que, enquanto se condena Paulo Freire nos gabinetes refrigerados de Brasília, boas escolas privadas dirigidas por educadores lúcidos, que abrigam justamente os filhos da maioria dessas pessoas, adotam, cada vez mais, projetos contemporâneos influenciados, no todo ou em parte, pelas ideias deste educador e filósofo traduzido em 27 idiomas”, comenta.
“Além disso, a suprema maioria dos professores das redes públicas não é ligada a qualquer partido político, não discute política partidária ou geral em sala e nem tampouco atua ou mesmo está próxima dos sindicatos da categoria, o que prova, uma vez mais, que essa conversa de doutrinação e escola sem partido é uma manobra diversionista fruto de falácia. O que pretendem, no fundo, é mesmo a mecanização e o esvaziamento crítico da educação brasileira.”
O pensamento de Padilha é compartilhado pela professora doutora da Faculdade de Educação da USP Sônia Maria Portella Kruppa. “Conhecimento se faz com diálogo e é um atributo do sujeito, e não do objeto. É um processo impossível de se construir sem livre-arbítrio e dimensionamento da realidade de cada um. Aluno precisa pensar, divergir, incorporar suas vivências ao que recebe para conseguir compatibilizar o conteúdo com sua experiência de vida. Se isso for retirado do processo, a educação se torna um mero acúmulo, uma mera superposição de dados numa situação em que o aluno se torna incapaz de processar e contextualizar o conteúdo recebido”, analisa. “Meu comprometimento pessoal como educadora é o de ajudar a criar condições para que os alunos identifiquem e contribuam para eliminar ou ao menos atenuar as desigualdades. Se não for assim, em um país como o Brasil não faz o menor sentido”, acredita.
Mas se todos esses argumentos de defesa realmente procedem, ao que se deve atribuir o retorno tão forte dessas restrições? “Ao atraso, meu caro, ao ululante atraso”, emenda o professor Alves antes de ouvir o final da pergunta. “O que mais progride hoje no Brasil é o atraso. Corremos o risco de a obra de Paulo Freire, em breve, parecer ter sido escrita noutra língua, tão estranha quanto a dos povos indígenas contatados na Amazônia para seu extermínio”, identifica ele. “O erro não será do mestre. Ele sempre aceitou divergências e interpretações do seu trabalho. Só reclamou de quem disseminou asneiras sem ler seus livros. Mas ele ainda está aberto ao Brasil. Os detratores de Freire mandaram falsos ‘estatísticos’ ver quantas vezes aparecem, no Pedagogia do oprimido, os nomes de pensadores e políticos tidos como de esquerda. E daí? Quem vai jogar a primeira pedra contra quem estabelece discussão teórica com pessoas de diferentes tendências para pensar a realidade local, regional ou global, sejam católicos, protestantes, xintoístas, ateus, materialistas e fervorosos em suas denominações religiosas?”
Na opinião de Alves, a educação brasileira corre sérios riscos se levar adiante o projeto de abandonar o educador pernambucano. “Poderemos ter gerações de analfabetos políticos, especialmente na política como cidadania, como pregava Aristóteles, que deixam o bonde andar sem destino ou crítica, sem desejos de fazer o mundo bom no sentido do bem comum, do que não é de interesse somente pessoal ou de grupos”, alerta. “A pedagogia freiriana se move no tempo, por isso ainda é indiscutivelmente atual e útil. Das primeiras obras até os anos de 1980 ocorrem nos textos formas de experiência e militância que abrem a inteligência para maiores e mais contínuas atitudes do filósofo, do crítico diante do sectarismo de certos educadores. Paulo foi sempre ótimo aprendiz e, melhor, também um excelente aprendente. Antonio Candido nos dizia, nas aulas de pós-graduação da USP, que tinha medo de que um dia se dissesse que Mário de Andrade seria entendido como um cometa que passou em certa época pelos céus do Brasil. Tenho o mesmo medo em relação ao Freire. Quero ser apaziguado do medo.” (EM)
Fonte: Revista Educação | http://www.revistaeducacao.com.br
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