Inserir uma área do conhecimento a mais no STEM chama a atenção para algumas questões relevantes sobre o papel da educação em arte
por Beatriz Mogadouro Calil / Gustavo Pugliese 27 de maio de 2019
Quem conhece ou ouviu falar em STEM education deve ter notado que às vezes o termo aparece como STEAM (sigla em inglês para ciências, tecnologia, engenharia, arte e matemática) e se perguntou qual a diferença. A resposta mais apropriada é: depende! Depende do que você entende como papel do ensino de arte no currículo e depende do que você considera como interdisciplinar. Vejamos o porquê:
Em meados dos anos 2000, quando STEM education passou a ser chamado de STEAM, incluindo a palavra Arte no acrônimo, pareceu que um problema havia sido resolvido: faltava inserir as humanidades em um movimento que prega a interdisciplinaridade e diz conectar o estudante com uma visão abrangente dos conteúdos escolares. Entretanto, inserir uma área do conhecimento a mais no STEM chama a atenção para algumas questões relevantes sobre o papel da educação em arte.
Uma delas é de que, em parte das propostas STEAM, a arte não está lá de verdade, mas apenas adornando o acrônimo. Afinal, ainda é muito comum o discurso que considera algumas disciplinas mais importantes que outras, valorizando aquelas que, teoricamente, preparariam “melhor” o aluno para o mercado de trabalho, ou ainda, que possibilitariam a produção de profissionais e mão de obra super-qualificada para o enriquecimento econômico do país. Porém, essa ideia de que algumas disciplinas são mais importantes que outras é bastante ingênua e ignora a complexidade da interdisciplinaridade.
Não é incomum encontrarmos propostas curriculares que priorizam as outras disciplinas e “encaixam” a arte nas brechas, inserindo uma etapa em que o aluno precisa inventar algo ou executar alguma técnica artística, como desenho ou pintura. Na maioria dos projetos interdisciplinares que incluem arte, inclusive os STEAM, ela é um adorno, serve apenas para enriquecer, executar ou finalizar algo que já está concebido.
Se você frequenta palestras de empreendedores e dos chamados “gênios da inovação”, já deve ter se deparado com o discurso que afirma que o ensino de arte é importante sim, pois a arte está inclusive “no DNA” de empresas inovadoras como a Apple. De fato, é o potencial criativo das empresas que muitas vezes se torna um divisor de águas nos mercados. Entretanto, é muito simplista a associação entre essas inovações criativas voltadas para o mundo do trabalho e a importância do ensino de arte.
“Considerar que o ensino de arte é menos importante pois não prepara para o mercado de trabalho e não ajuda no enriquecimento econômico do país é considerar a formação de um estudante apenas de maneira superficial”
Dessa associação nascem dois problemas de natureza reducionista: o primeiro deles é de que a arte está a cargo das demais disciplinas. Ensina-se arte basicamente porque ela pode embelezar produtos criados por outras disciplinas. O segundo equívoco é que arte traduz-se em design e criatividade. Ora, é claro que a criatividade e o design importam enormemente na formação do ser humano e poucas disciplinas são tão capazes de explorar essas dimensões como a disciplina de arte. Todavia, reduzir todo o potencial do ensino de arte a esses elementos é um equívoco.
Considerar que o ensino de arte é menos importante pois não prepara para o mercado de trabalho e não ajuda no enriquecimento econômico do país é considerar a formação de um estudante apenas de maneira superficial, enxergando, por exemplo, a simples equação: se um jovem estudar mais horas de matemática e menos horas de arte terá um amplo conhecimento de cálculo, entrará em uma universidade conceituada e se tornará um engenheiro que trará riquezas e desenvolvimento ao país.
Contudo, essa visão simplista esquece de considerar que esse engenheiro irá viver em um mundo cheio de complexidades e especificidades e terá que encarar desafios e obstáculos em sua vida, tanto profissionais como pessoais. Esse engenheiro precisará se relacionar com inúmeras pessoas, precisará interagir e respeitar a diversidade que o cerca, se reinventar caso perca seu emprego, se reerguer caso perca um ente querido, ou precisará aprender outro idioma, criar um filho, escrever um livro para divulgar a importância de seu trabalho na engenharia, etc. São infinitos os fatos que podem ocorrer durante toda a vida desse engenheiro que exigiriam dele uma inteligência além daquela exata, racional e matemática.
São muitos e diversos os desafios e situações que uma pessoa enfrenta durante a vida, por isso devem ser muitas e diversas as camadas da educação. Por isso não é possível montar uma equação simples que considere apenas formação específica, mercado de trabalho e desenvolvimento da economia, como se não houvesse nada mais no caminho. Daí a importância de uma formação ampla, que contemple a igualdade de importância entre exatas, humanas, artes e biológicas. Apenas com essa formação ampla e equilibrada um engenheiro poderá trabalhar de fato pelo desenvolvimento de seu país, pois não será apenas um profissional que produz novos edifícios, por exemplo, mas um cidadão com pensamento crítico, que criará seus projetos com base na sustentabilidade, respeitando a diversidade e as necessidades da comunidade ao redor. Além disso, será um ser humano que consegue lidar com suas emoções e relações pessoais, que não reproduz atos de racismo, machismo ou intolerância religiosa, por exemplo.
E como a arte pode participar efetivamente do STEAM?
Primeiramente, é necessário compreender que a arte/educação não diz respeito somente ao ensino de história da arte ou ao ensino de técnicas e práticas artísticas, como desenhar, pintar, tocar um instrumento, etc. A arte/educação é uma maneira de pensar, entender, almejar e possibilitar um ensino amplo aos estudantes, considerando que a arte é uma maneira de estar no mundo, de conviver em sociedade, de conhecer diversas culturas, de lidar com as diferenças e de se expressar. Arte não serve para que os estudantes possam aprender a desenhar respeitando a técnica da perspectiva, não serve para que decorem a escola para as datas comemorativas, nem para que aprendam a cantar uma música para a festa de final de ano. Se assim fosse, realmente seria uma disciplina dispensável à formação de todos os cidadãos.
A arte é muito mais que isso, é um campo do conhecimento que contribui imensamente na formação do ser humano. Arriscamos a dizer que a arte possui um potencial educativo que talvez nenhuma outra disciplina ofereça, pois possibilita que os estudantes expressem seus sentimentos e tenham acesso e compreensão perante subjetividades próprias e do mundo que o cerca. E no que isso ajuda? Um exemplo simples: no combate às violências e ao preconceito. Um ser humano com capacidade para perceber e compreender subjetividades é um ser humano tolerante, que respeita diferenças e tem mais sensibilidade para lidar com as pessoas com as quais convive.
Com essa subjetividade a arte/educação amplia as capacidades reflexivas e perceptivas e envolve, além da inteligência racional, a afetiva e a emocional. Pela arte o estudante pode se conhecer melhor, pensar sobre si mesmo e suas emoções. A maioria dos nossos sentimentos são completamente inefáveis, impossíveis de serem traduzidos em palavras ou teorias e a arte pode ser uma das únicas possibilidades de compreendê-los e expressá-los.
Além disso, o ensino de arte possibilita o desenvolvimento de uma educação que auxilia o estudante a lidar, respeitar e conviver com diferentes pontos de vista, pois com essa disciplina ele pode se expressar integralmente, trabalhar em grupos, conhecer as opiniões, especificidades e diferenças entre ele e as pessoas com as quais se relaciona.
“A arte também auxilia em processos de escolhas e tomadas de decisão, já que um componente essencial no processo artístico é a seletividade criativa individual”
A arte também auxilia em processos de escolhas e tomadas de decisão, já que um componente essencial no processo artístico é a seletividade criativa individual, daí a importância do professor sempre possibilitar escolhas ao estudante e não fornecer papéis com contornos de desenhos para colorir, possibilitando que uma turma de 30 alunos produza 30 pinturas do mesmo desenho. Daí a importância de não embasar o ensino de arte em releituras de obras de artistas cânones, como comumente se faz. Sem o desenvolvimento do protagonismo e da liberdade de escolha, como é possível cobrar que um cidadão se forme na escola e possa escolher, com senso crítico e opinião própria, em quem votar nas eleições governamentais, por exemplo?
Além de todo esse potencial da arte como expressão, não se pode esquecer do valor da arte como cultura, que também deve se fazer presente na arte/educação e nos projetos STEAM. O ensino de arte faz a cultura emergir, com isso vêm à tona a diversidade, a multiculturalidade, o respeito e a valorização do outro. Trabalhar a arte como história social e cultura amplia de forma considerável a visão de mundo do estudante e possibilita infinitas maneiras de transdisciplinaridade. Daí a importância de não restringir as aulas ao ensino de uma história da arte cânone, branca e de raiz europeia, mas ampliá-la às inúmeras culturas, a cultura do estudante e a toda manifestação que costuma ser rebaixada à “popular”.
Enfim, é preciso desvincular a arte do talento, do dom e da genialidade criadora. Todos os seres humanos têm potencial para a arte, visto que ela não é técnica, mas expressão, opinião, política, ação, etc. É preciso construir um ensino de arte que não seja baseado em beleza, em grandes mestres, em técnicas, mas que seja cotidiana, acessível e possível. O ensino de arte deve levar o aluno a descobrir novos horizontes, a ter a possibilidade de transformar a si próprio e o mundo.
“É preciso desvincular a arte do talento, do dom e da genialidade criadora”
É por isso que o ensino de STEM não se basta sozinho, sem integrar as artes e as ciências sociais. E é por isso também que não basta somente incluir a letra A para que a Arte se faça presente. É preciso considerar que uma educação de qualidade deve sempre contemplar, sem hierarquias, três tipos de linguagem na formação de um ser humano: a verbal (ou linguística), a científica e a artística. Esta última não pode ser traduzida em outras linguagens, o potencial de expressão que ela possui não pode ser substituído pelas outras duas, assim como as outras duas não podem ser substituídas por ela. Menosprezar o A do STEAM é desconsiderar aspectos essenciais do ser humano. Todos os estudantes devem ter direito à essa linguagem, devem ter direito à arte.
Para saber mais sobre STEM vs. STEAM e Arte/educação
ALBANO, Ana Angélica. Agora eu era o herói: imaginação e expressão artística na primeira infância. Revista Digital do LAV, Santa Maria: UFSM, v. 11, n. 2, p. 09-19, mai./ago. 2018.
BARBOSA, Ana Mae (org.). Arte/Educação Contemporânea – Consonâncias Internacionais. São Paulo: Cortez Editora, 2017.
THE EDITORS. STEM Education Is Vital–But Not at the Expense of the Humanities– Scientific American. In: Scientific American, out. 2016. Acesso em: 29 mar. 2019.
PUGLIESE, G. O . STEM: o movimento, as críticas e o que está em jogo. Porvir – Inovações em Educação (online). São Paulo, 23 de abril de 2018.
Autores:
Beatriz Mogadouro Calil
Mestra em Artes Visuais pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Possui graduação em Artes Visuais pela mesma universidade. Tem experiência como professora de arte no ensino privado e público de São Paulo e atualmente atua como editora de livros didáticos para a disciplina de arte
Gustavo Pugliese
Doutorando na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), onde realiza pesquisa sobre o tema STEM education. Realizou mestrado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e possui graduação em Letras e Ciências Biológicas pela mesma universidade. Atua na formação de professores com os temas de educação científica e tecnologia na educação.
Fonte: Porvir.org | http://porvir.org/stem-ou-steam-para-que-serve-o-ensino-de-arte/
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